
Estavam em fila, à beira do caminho, saudando os viajantes com as línguas muito estendidas, numa grosseria. Mostravam vários graus de podridão. Os melhor conservados com certeza morreram na maior das aflições, sorvendo, com o seu último alento, aquele cheiro dos cadáveres, vendo neles a sua própria carne a rebentar. Se o medo dos tormentos educasse, ninguém se atreveria ao menor roubo.
Porém, a gente olhava para o lado e tapava as narinas com as mãos. Apesar disso, vomitavam e cuspiam, e aquele chão luzia sob o sol. Vermes rosados escorregavam sob as chagas muito abertas pelas aves carniceiras nos mortos que pendiam há mais tempo. E, ainda que os passantes se benzessem e um frade ou outro levantasse a cruz, a impiedade afogueava os rostos. Nem na morte os ladrões e os assassinos deixavam de feder, de gotejar, com as partes puendas animadas por uma singular tumefacção.
[CORREIA, 2002, p. 135 e 136]

Hélia Correia é uma autora portuguesa nascida em 1949. É licenciada em Filologia Românica e professora de Português do Ensino Secundário. Recebeu em 2002 o prémio PEN 2001, pela sua obra Lillias Fraser; o prémio literário Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa com o livro de poesia A Terceira Miséria; e o Prémio Camões, em 2015.
Lillias Fraser é um romance histórico que se passa entre 1746 e 1762 e onde acompanhamos uma parte da vida de Lillias que ainda em criança começa a ter visões de mortes e tragédias. Orfã desde tenra idade, Lillias passa, ao longo dos anos, por duras e dificeis situações e à medida que acompanhamos o seu crescimento e a sua vida acompanhamos também um pouco da história de Portugal e não só.
Lillias Fraser é um livro denso, com muito contexto histórico e que deve ser lido com calma. E é também um livro muito bom. A vida de Lillias e dos que a cercam agarra-nos desde o primeiro momento, as descrições que a autora faz são abismais e a escrita é deliciosa.
Marcou-me bastante a forma como a autora refere e descreve o terramoto de Lisboa e os tempos que se lhe seguiram. É um marco importante no livro, tal como o foi para o país. E o final da obra, esse, é encantador. Ficamos com vontde de saber o que acontece a seguir, a Lillias.
Muito recomendado. 4,5*