“A mãe não podia compreender o que significava para ele receber uma prenda – estender a mão e ver nela, não a malga do caldo habitual, mas qualquer coisa de inesperado e gratuito, que fosse a irrealidade da riqueza na realidade duma pobreza conhecida de lés a lés.”
“Saudel, abismado, ouve. Depois, à saída, pôs-se a ruminar. Quem irá dizer lá em cima tão mal do povo? Os homens cavam de manhã à noite, as mulheres parem quantas vezes a Virgem Maria quer, os rapazes e as raparigas vão com o gado… Quem irá meter coisas daquelas nos ouvidos de Deus?”
“Que mais lhe fazia viver na cadeia ou em Guiães, solto ou preso, às grades ou pelas serras a cabo? Tanger machos, calcorrear caminhos, cozer o corpo ao sol e às geadas, tem sentido se nos espera ao lume ou na cama quente a presença de alguém.”
Nesta obra, tal como sugere o titulo, Miguel Torga traz-nos uma antologia de contos que se passam ou estão relacionados, todos, com a montanha.
Não consigo falar deste livro sem o comparar com o Bichos, do mesmo autor, que li recentemente. O Bichos cativou-me o coração e a alma de leitora. Este dificilmente poderia ser melhor, para mim, que o anterior. E de facto não foi.
Ainda assim não posso dizer que não me tenha tocado também no coração.
As histórias são de montanha mas fazem-me lembrar profundamente o meu alentejo, onde não estou. Os homens que cavam, as mulheres que parem, as crianças com o gado. As bebedeiras, as missas e os padres que quase poderiam soar a sátira se eu não soubesse (se não tivesse visto) que eles são mesmo assim. As cantigas do lavor, que tem o som de casa.
E a tristeza, aquela tristeza tão característica que adorna e poetisa os contos de Torga. É uma tristeza que, também ela, tem sabor a palha seca e a terra molhada, aos trabalhos do campo e ao sangue das mães.
Como disse antes, este livro dificilmente me poderia tocar mais que o Bichos. Ainda assim, tocou-me profundamente. Fez-me sentir de volta a casa, fez-me-me sentir novamente a terra lamacenta das hortas da minha terra e deixou-me ouvir o canto das mulheres antes da desgraça. Cada linha destes contos é um pouco das minhas raízes.
Um livro excelente.
Muito recomendado!
5*
Um dos autores que aprecio tanto nos contos como na poesia. De facto, também prefiro “Os bichos”
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Um autor fantástico. A seguir, é o Rua 😉
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