Resumo de leituras [janeiro e fevereiro 2024]

Felizes anos de castigo
Fleur Jaeggy

Livro Físico

Eu compreendia aquelas crianças que se atiravam do último andar de um colégio só para fazerem alguma coisa desregrada, e disse-lho. A ordem era como as ideias, uma posse, uma possessão. [p. 54]

Exigia a solidão, era um estado de ébrio e tranquilo egoísmo, uma vingança feliz. Parecia-me que aquela ebriedade era uma iniciação, e que o mal estar da felicidade se devia a uma aprendizagem mágica, a um rito. Depois, deteriorava-se. Não voltei a experimentar aquela sensação em particular. Cada paisagem construia o seu nicho e encerrava-se nele. [p. 57]

Fleur Jaeggy nasceu a 31 de julho de 1940 em Zurique, na Suíça. Cresceu em colégios internos na Suíça, foi modelo fotográfico e conta atualmente com oito livros publicados. Felizes anos de castigo é um livro curto que nos traz a história, contada na primeira pessoa, de uma jovem adolescente a crescer num colégio interno na Suíça na década de 1950.
Foi uma leitura cativante, um livro que se percebe denso e com as mais variadas referências, sem que isso o torne mais pesado. O leitor consegue deixar-se levar até ao dia a dia daquele colégio, percebe as suas regras e o ambiente que se vive lá, sem no entanto o conhecer realmente ao pormenor. Conhece também a jovem que nos conta a história, com a sua mente intrincada e os seus sentimentos e pensamentos que são extremamente complexos. Ainda assim, senti que faltava algo. Conhecemos os pensamentos e a vida daquela jovem, percebemos o que sente mas nunca o sentimos realmente. É como se a autora nos estivesse a tentar contar a história mas sem conseguir expor os seus sentimentos ao leitor. O romance entre aquelas duas personagens acaba sempre por ser platónico, o que é compreensível, mas não é explicado ao leitor porquê. Seria as jovens que não percebiam o que se passava? Seria pelas dificuldades da época? Pela falta de aceitação? Pelo contexto em que viviam? Uma belíssima história, magnificamente escrita, mas que mantém o leitor apenas à superfície da situação. Gostaria de ter tido oportunidade de conhecer esta paixão mais aprofundadamente. Livro recomendado. 3*

Heartstopper 1 a 3
Alice Oseman

Livros Físicos

Alice Oseman nasceu a 16 de outubro de 1994 no Reino Unido e é uma reconhecida autora de livros para jovens adultos. Heartstopper, a sua obra mais conhecida, é uma banda desenhada que conta já com 5 volumes. Nela o leitor é levado a conhecer o amor entre dois rapazes, Charlie e Nick, em diversos pontos da sua história. No primeiro volume eles conhecem-se, ainda no liceu, e apaixonam-se. O volume 2 e 3 falam da sua auto aceitação, do seu coming out e do desenvolvimento da sua relação. A história destes livros é verdadeiramente amorosa. São obras que tratam a homossexualidade e os temas que a cercam tal como devem ser tratados, com normalidade, como qualquer outro tema. São obras de leitura fácil e rápida, verdadeiramente apaixonantes, que prometem cativar facilmente jovens leitores, tal como as temos visto fazer até agora. Nestes três primeiros volumes são referidos alguns temas mais pesados, como o bulliyng e distúrbios alimentares. Percebemos que eles existem e estão lá, no entanto não são o ponto fulcral dos livros. Consigo perceber isso e acho importante que a autora tenha conseguido referir esses temas sem tornar estas obras em algo duro e pesado. No fundo, o mais importante é sempre o amor, e é isso que sentimos com esta história: amor. Muito, muito recomendado. 5*

A natureza da mordida
Carla Madeira

Demorei a entender que não temos que nos desculpar pelo nosso sofrimento, Biá. Um amor interrompido não é uma dor qualquer. Não é uma dor qualquer ser interditada, impedida de estar com quem amamos justamente por quem amamos. É uma dor cheia de direito.

Tenho às vezes vontade de quebrar todos os ovos da cesta, quanto mais delicado for o paninho sobre o qual se mostra encantadora; gritar ofensas no silêncio da eucaristia, desconcertando todos os fiéis com os seus semblantes orgulhosos de serem bons; empurrar um desconhecido nos trilhos diante do trem que se aproxima. São vontades de libertar a loucura.

Mais cedo ou mais tarde acontece o que não pode ser desfeito. Você acorda e pensa: até ontem eu era feliz, e sabe que isso não terá mais conserto. Nada a fazer. O cachorro morde. O cachorro fere na mordida. A carne rasga-se na mordida. O sangue escorre na mordida. Os dentes encostam-se na mordida. As marcas fazem-se na mordida. Nada a fazer. A natureza da mordida está lá. Não importa o quanto sejamos civilizados.

Carla Madeira nasceu no Brasil, em 1964.  É formada em Jornalismo e Publicidade e foi professora de Redação Publicitária na Universidade Federal de Minas Gerais. Conta, até agora, com as obras Tudo é Rio, Véspera e A Natureza da Mordida. Em A natureza da Mordida a autora traz-nos a história de duas mulheres, Biá e Olivia. Biá é uma idosa, psicanalista reformada, que beira agora a demência. Tem uma filha e o marido afastou-se misteriosamente delas muitos anos antes. Ao longo do livro somos levados a tentar perceber porque Teo, o grande amor da vida desta mulher, se afastou de uma família feliz e de um amor correspondido. Nem a própria filha do casal sabe a resposta. Olivia, por outro lado, é uma jovem mulher, devastada por uma perda com a qual ainda está a aprender a lidar, a de Rita. Também ela não sabe verdadeiramente o que aconteceu para que Rita tivesse deixado de fazer parte da sua vida. Estas duas mulheres conhecem-se à mesa de um café e ao longo do livro vemo-las tornarem-se amigas e contarem as suas histórias. Ainda assim, são histórias separadas, razão pela qual eu farei uma opinião separada. Biá trouxe-nos, na minha opinião, a melhor das histórias. Repleta de mistério, o leitor chega a ficar quase frustrado, de tanto que aquela velha mulher evita tocar no assunto da partida do marido. Ela sabe por que se foi ele embora, mas não o diz. E não o diz, e não o diz. Quando finalmente percebemos o motivo, que nos é dito com meias palavras quase só nas entrelinhas, o queixo cai-nos de espanto. É o ponto alto do livro, a surpresa, faz toda a leitura valer a pena. Não sei, no entanto, se posso afirmar que considerei esta história algo credível. Haverá, em algum sitio, algum casal que se tenha afastado nestas condições? Talvez, mas tenho muitas dúvidas. É de uma maturidade emocional difícil de encontrar. Depois temos Olivia. A história que me fez querer ler o livro à partida, aquela sobre a qual estava mais curiosa. E que me deixou meio confusa e a querer mais. Não é dito, em momento algum, que havia paixão entre Olivia e Rita, apesar de isso ficar claro nas entrelinhas. Um amor platónico, possivelmente nascido das nenhumas referências que elas tinham sobre homossexualidade. E uma relação que acaba abruptamente, sem que fique claro ao leitor qual o motivo. São dadas hipóteses, duas hipóteses possíveis, mas não chega a ser esclarecido qual é a verdadeira. E Rita e Olivia nunca chegam a falar sobre isso. Duas mulheres com duas relações que desabam, uma por uma grande falta de maturidade e comunicação, outra por uma maturidade imensa. A leitura é boa e doce, embora possa tornar-se brevemente fastidiosa em alguns momentos. Livro recomendado 4*

Não-Coisas
Byung-Chul Han

Livro Físico

Em Não-Coisas, Byung-Chul Han visita o universo digital e analisa o impacto que ele tem nas nossas vidas e na nossa realidade. Não-Coisas não é um livro que se leia de um fôlego, apesar da curta dimensão. É um livro complexo e denso, que merece e precisa de ser analisado e mastigado; um livro que não irá conquistar qualquer tipo de leitor mas que se revela cada vez mais essencial nos nossos dias. É uma obra que nos faz pensar muito a fundo sobre nós e o que nos cerca; e que, muito facilmente, nos deixa a sentirmo-nos um pouco mal com o estado a que deixamos a sociedade chegar e com a forma fácil como nos entregámos a certas facetas da atualidade. Recomendo muitíssimo, mas é um livro que deve ser lido com paciência e com a cabeça bem assente. 5*

O Primo Basílio
Eça de Queirós

Livro Físico

Luísa era uma mulher feliz. Casada com Jorge, que a amava e que ela amava, tinha uma vida calma e confortável, com tudo o que podia querer. Até Jorge precisar de ir para o Alentejo em trabalho e reaparecer, na vida dela, o seu primo Basílio. Basílio, primo de Luísa, emigrara para fazer fortuna, rompendo com ela o namoro. Mas quando se reencontram o seu antigo amor volta à tona e parece capaz de tudo… ou será que não? O Primo Basílio é uma obra magnifica do Eça de Queiroz. Um livro que se lê de uma assentada, que nos faz dar umas valentes gargalhadas e de vez em quando ficar de queixo caído. É um livro bem construído, com várias personagens carismáticas que se destacam. É impossível não simpatizar com pelo menos uma delas! É também um livro que foi uma forte critica à sociedade da época e facilmente até mesmo à sociedade atual. Uma obra prima! 5*, muito recomendado.

Nas minhas mãos, a morte
Anabela Lopes

Livro Físico

Nas minhas mãos, a morte de Anabela Lopes é uma obra que faz parte do novo selo da editora Saída de Emergência, Eu  Autores Portugueses. Não quis começar este post sem deixar uma nota sobre esta iniciativa, que me parece magnifica e digna de realce. A editora decidiu apostar mais em autores portugueses e consta que irão ser lançados vários novos autores ao longo deste ano. A primeira coisa que me chamou a atenção nesta obra foi a capa, que acho simplesmente brilhante. Acabei por o comprar sem saber muito bem ao que ia, sem ter grandes expectativas. A leitura é fácil e o livro devora-se, li-o em dois dias. Foi um livro que me agarrou mas que me causou sentimentos contraditórios. A determinada altura senti que a narrativa era muito linear. Começamos com o nascimento da personagem principal e vamos seguindo a sua vida ao longo do tempo, só. Passei a maioria do livro sem perceber onde a história ia dar. A determinado momento, quando já só me faltavam meia dúzia de páginas, pensava “mas o que raio vai acontecer? Não é possível que a autora consiga esclarecer isto tudo em tão poucas páginas”. Mas a verdade é que conseguiu. O final deste livro caiu-me de rajada, de uma forma que não estava nada à espera e que me deixou de boca aberta. Se querem um livro com um final surpreendente, é este. Muito, muito bom! Recomendado! 4*

As estações da vida
Agustina Bessa-Luís

Livro Físico

As melhores viagens eram as das férias. Os da cidade punham o seu ar condescendente e olímpico, ofendiam-se com a algazarra, os encontrões, a falta de espaço. Cada pessoa que entrava de novo era recebida com um silêncio hostil. Depois habituavam-se, deixavam lugar, arrumavam os pés e os embrulhos. Os caçadores viajavam no furgão com os cães, que vomitavam, muito afincados nas quatro patas para manterem o equilíbrio. De noite, se era Natal, os últimos, os retardatários, subiam para o tejadilho. Eram soldados e pequenos aprendizes de ourives, de tanoagem e sacudiam do cabelo as fagulhas estreladas que se apagavam no céu límpido.

Comecei a ler As estações da Vida por mero acaso, sem ler a sinopse, pensando que d alguma forma o livro nos iria falar sobre a passagem da vida e do tempo. Mas, apesar de esse tema acabar por estar lá de certa forma, o livro é bastante mais literal. Neste texto a autora fala sobre as estações de comboio que conheceu, as viagens que fez e as pessoas que via e conhecia nessas viagens. É um livro pequeno mas denso, maravilhosamente escrito, repleto de uma certa poesia. É maravilhosa a forma como a autora consegue por uma aura tão bela em volta de algo como viagens e estações de comboio. Recomendado. 3*

A biblioteca: uma segunda casa
Manuel Carvalho Coutinho

Livro físico

Ainda assim, será possível? Como dizia José Roque, não há como convencer as pessoas a virem à Biblioteca. E, pensando nisso, reflito sobre as mais de 300 Bibliotecas Municipais espalhadas pelo país e o seu futuro. Continuarão a existir daqui a 50 anos? Ou 30 ou até daqui a 10 anos? Com o diminuir da população, estarão as Bibliotecas Municipais fora das grandes cidades destinadas a encolher de tal forma, que um dia desaparecerão sem pompa e circunstância? Continuará a fazer sentido ter bibliotecas cheias de livros que vão envelhecendo, se a maioria dos leitores trazem computadores portáteis e leem menos em papel? Como será a Biblioteca do futuro?

Para escrever A Biblioteca: uma segunda casa, Manuel Gago Coutinho viajou pelo país e percorreu 21 das 303 bibliotecas públicas do nosso país. Bibliotecas de diferentes dimensões, que servem diferentes públicos, com os mais variados tipos de recursos, objetivos e projetos. Este livro chamou-me a atenção, mas admito que entrei na leitura com um pouco de receio. Afinal, o autor vai falar de bibliotecas, mas não é bibliotecário. Acabou por ser uma leitura bastante agradável. É um livro pequeno, que dá apenas um panorama geral sobre cada uma das bibliotecas e traz algumas questões interessantes, ainda que de forma breve. Acabei por ficar agradada por o autor não ser bibliotecário, pois senti que isso lhe permitiu um maior nível de imparcialidade. Gostei e recomendo. Gostaria apenas, talvez, que fosse uma obra de uma dimensão um pouco maior que pudesse trazer-nos mais bibliotecas e de forma mais aprofundada. Recomendado. 4*

Mediunidade
Gordon Smith

Livro Físico

Em Mediunidade, Gordon Smith pretende trazer-nos um panorama geral sobre como reconhecer e treinar este dom. É um livro que se lê muito facilmente mas que eu em particular não achei nada de extraordinário. O autor fala imenso sobre meditação e sobre a sua própria história, o que é interessante até certo ponto, mas acaba por ser um livro que não acrescenta grande coisa a não ser que o leitor esteja realmente a zero sobre a temática. 2*, mais ou menos recomendado.

Um mistério no labirinto
Italo Calvino

Livro Físico

O rei Clodoveu segue, à frente do seu exército, de volta para o seu reino, Arvoreburgo. No entanto a floresta que o cerca parece não querer que o rei consiga encontrar o caminho. A rainha, que o espera no castelo, tem um plano para usurpar o seu poder e um forte aliado. No entanto, ao passearem em volta da muralha, acabam perdidos… Um Mistério no Labirinto é um livro infantojuvenil que beira o absurdo, mas que é verdadeiramente interessante. Consegue prender o leitor com a sua história que é ao mesmo tempo uma história bastante comum – um reino, um rei e a tentativa de usurpação de poder – e uma história fora da caixa. Vale a pena espreitar. 4*, recomendado.

Na terra somos brevemente magníficos
Ocean Vuong

Livro Físico

“Eh”, disse, quase a dormi. “o que eras antes de me conheceres?”
“Acho que era alguém prestes a afogar-se.”
Uma pausa.
“E o que és agora?”, sussurrou, cedendo ainda mais ao sono
Pensei por instantes. “Água.”

Eu sei. Não é justo que a palavra rir esteja presa dentro de ferir.

Disseste-me uma vez que o olho humano é a criação mais solitária de deus. Passa tanto do mundo pela pupila e, apesar disso, ela não guarda nada. O olho, sozinho na sua órbita, nem sequer sabe que há outro, exatamente igual, a dois centimetros e meio de distância, tão faminto e tão vazio como ele. Quando abriste a porta para o primeiro nevão da minha vida, sussurraste: “Olha.”

Em Na terra somos brevemente magníficos o autor, Ocean Vuong, conta-nos a sua própria história através de uma carta escrita pelo filho à mãe que não sabe ler. Numa escrita fluída, poética e comovente o autor fala-nos da sua infância, da sua família, de imigração, de homossexualidade, de violência e de amor. É um livro que nos traz memórias de experiências pesadas, sem se tornar demasiado pesado. Uma vez por outra algumas coisas são ditas apenas nas entrelinhas, como quem diz sem querer dizer, e um leitor desatento facilmente passa por elas sem as perceber. Ao mesmo tempo é um livro apaixonante, que emociona ao falar-nos do primeiro amor, de autodescoberta e autoaceitação. Um livro magnífico! 5*, muito recomendado!

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