A viagem literária, ou passaporte literário, é um desafio da Comunidade de Leitura da BPE que nos impele a ler, ao longo de 2023, autores de livros de países que habitualmente não lemos tanto. Hoje, como não queremos deixar passar este desafio em branco, temos para vocês uma lista com os 10 primeiros países que visitámos, através dos livros, neste desafio.
Guatemala
Luto
Eduardo Halfon

Eduardo Halfon traz-nos nesta obra a personagem Eduardo Halfon, que pode ou não ser o autor. Aqui, vemos esta personagem interessar-se pela história da sua família, dos seus avós e, sobretudo, do irmão do seu pai, que lhe contaram ter morrido afogado aos 5 anos mas do qual ninguém fala abertamente. Este é um daqueles livros que percebemos a qualidade, a densidade e o quanto nos vai dominar logo nas primeiras linhas. É um livro bastante curto, repleto de repetições, que enreda o leitor numa teia densa mas fácil de compreender. Aos poucos sentimo-nos como fazendo parte daquela família judaica, sentimos conhecer aquelas personagens que passaram por tanto, que trabalharam nos campos de concentração e viram um filho morrer. E é também um livro que nos traz algumas surpresas, uma ligeira nuance de paranormal e no final nos deixa com um nó no estomâgo de arrependimento pelo que se fez, ou não se fez. Um livro curto, mas que toca, que comove, que preenche. Muito recomendado. 5*
Suécia
Mulheres que Não Perdoam
Camilla Läckberg

Camilla Lackberg nasceu a 30 de agosto de 1974 em Fjällbacka, na Suécia. É conhecida internacionalmente pelos seus thrillers e romances policiais, sendo uma das escritoras do género mais reconhecida na atualidade. Em Mulheres que não perdoam a autora apresenta-nos três mulheres, Ingrid, Birgitta e Victoria, que sem se conhecerem pessoalmente se encontram num fórum da internet e combinam o crime perfeito. Uma, é vitima de violência doméstica e ao descobrir que tem cancro precisa urgentemente de traçar um plano para garantir o futuro dos seus filhos gémeos após a sua morte. Outra casou “por encomenda” e está prisioneira de um homem violento que a trata como uma boneca insuflável. A terceira abdicou da sua carreira pela carreira do marido e um dia descobre que está a ser traída. Nunca tinha lido nada de Camilla Lackberg e admito que é uma leitura muito mais acessível do que pensei. É um livro curto, que se devora de uma assentada, empolgante. A autora conseguiu criar três personagens femininas astante fortes, e apesar de vermos a história de uma forma um pouco superficial, quase que “de longe” é uma história que entusiasma e apaixona. Quando damos por nós estamos realmente a torcer por aquelas três assassinas. Muito recomendado. 5*
EUA
Sei porque canta o pássaro na gaiola
Maya Angelou

Em Sei porque canta o pássaro na gaiola Maya Angelou conta-nos a sua infância e adolescência até se ter tornado mãe. Fala-nos sobre a sua vida no interior com a avó religiosa, o afastamento dos pais e a sua violação, pelo namorado da mãe, ao 8 anos. Fala-nos sobre o imenso amor que tinha pelo seu irmão, sobre a sua mãe que admirava e o pai que mal conhecia. E ao falar-nos sobre a sua vida Maya fala-nos também sobre o contexto social que a cercava. O preconceito, o medo, a religião e muito mais. É um livro de leitura fácil, que se devora. Maya é alguém de quem é fácil gostarmos. E é ao mesmo tempo um livro que traz temas pesados, mais subentendidos, tratados com a leveza de uma criança. É incrível a forma como esta mulher, já adulta, conseguiu pôr no texto sobre a sua infância a inocência tipica da idade. É bonito, maravilhoso, duro e pesado. Recomendado. 5*
Polónia
Histórias Bizarras
Olga Tokarczuk

Em Histórias Bizarras Olga Tukarczuk traz-nos um conjunto de 10 contos, histórias, que são realmente um tanto ou quanto bizarras. Dificilmente conseguiria explicar estas histórias, estas “bizarrias”, sem fazer spoiler, portanto não o farei. Sinto que li até agora bem menos do que gostaria de ler da Olga Tokarczuk mas a verdade é que preciso sempre de fazer uma pausa entre um livro e outro. Olga não é uma escritora para as massas: é uma leitura longa, que nos deixa a pensar e que é preciso digerir. E às vezes não é fácil de digerir. Mas é, acima de tudo, uma escritora verdadeiramente brilhante, impressionante, que tem o dom de tocar no mais fundo de nós. Por vezes já tenho comentado aqui no blog que “não li este livro na altura certa” Eu diria que com Histórias Bizarras me aconteceu exactamente o contrário. Era isto, era totalmente isto, que eu estava a precisar de ler. As histórias deste livro são de facto um tanto ou quanto bizarras. Mas têm sempre a sua razão, a sua própria profundidade, a sua própria “lição” e motivo de existência. Atrevo-me ainda a dizer que esse será diferente para cada um de nós: são histórias que nos levam à nossa essência e que serão sem dúvida interpretádas das mais diversas maneiras. O que Olga Tokarczuk faz neste livro é algo raro, dificil de fazer. E eu admito que este livro mexeu comigo como nenhum livro mexia, há muito tempo. Excepcional. Livro preferido.
Haiti
Como Fazer Amor com um Negro sem se Cansar
Dany Laferrière

Nesta obra conhecemos Cota e Bouba, dois jovens negros que dividem um quarto em Montreal nos anos 70. Um alimenta o sonho de ser escritor, o outro dorme horas infindas enquanto caminha para um qualquer despertar espiritual. Na sua rotina, muito jazz, imenso sexo e um vizinho extremamente barulhento que eles apelidam de Belzebu. Como fazer amor com um negro sem se cansar é uma sátira original aos estereótipos racistas, um livro controverso e atrevido que nos leva a umas boas gargalhadas mas que também tem o dom de nos deixar a pensar. É um livro muito inteligente, de humor requintado e que diz tudo o que tem a dizer sem qualquer tipo de filtro. Capaz, arrisco-me a dizer, de ferir algumas suscetibilidades. Mas a literatura deve servir exatamente para isso. Recomendado. 4*
República Checa
Uma Solidão Demasiado Ruidosa
Bohumil Hrabal

Agora em tradução revista, Uma Solidão Demasiado Ruidosa (1976) é a história do velho Hanta, que, por ofício, prensa e destrói livros no subsolo de Praga, e que, por amor, salva dessa hecatombe os mais belos achados em pilhas de papel: textos de Kant, Hegel, Camus, Novalis e Lao-Tsé, todos eles condenados à destruição pelas autoridades. Até que, um dia, o progresso quer aniquilar com mais eficácia as páginas que Hanta insiste em resgatar da sua obsoleta prensa. Censurada e publicada em samizdat, Uma Solidão Demasiado Ruidosa tornou-se uma obra de culto sobre a indestrutibilidade da memória e da palavra e o seu poder redentor em tempos bárbaros. Bohumil Hrabal confessou ter vivido apenas para escrever este livro.
Cuba
Chamem-me Cassandra
Marcial Gala

Em Chamem-me Cassandra o autor apresenta-nos Rauli um rapaz que se sente mulher e que adivinha o futuro. Em Cuba nos anos 70 somos então levados a conhecer a sociedade e preconceito. Acreditando ser a reencarnação de Cassandra, vemos Rauli em busca da sua identidade. Rauli acaba por alistar-se e ir para a guerra de Angola, como forma de cumprir o seu destino. A escrita de Marcial Gala é, só por si, algo de maravilhoso. Complexa e muito poética é também uma escrita que se lê facilmente, que requer um pouco de atenção mas sem exigir em demasia. A história de Rauli é apaixonante e surpreendente. É uma história fora da caixa, que foge daquilo que se esperaria. Foi um livro que adorei ler, mas senti que gostava de ter lido mais. É como se as questões tratadas neste livro – identidade de género, preconceito relações familiares, guerra – estivessem tratadas apenas à superficie. A história está toda lá – mas poderia ter mais pormenores. É, sem sombra de dúvida, um livro que vale muito a pena. Um livro a que muito provavelmente irei voltar, para ler e reler. Livro recomendado. 4*
Moçambique
Venenos de Deus, Remédios do Diabo
Mia Couto

Em Venenos de Deus, remédios do Diabo, conhecemos o médico Sidónio Rosa, português, que se apaixona pela moçambicana Deolinda e parte para Vila Cacimba, em Moçambique para lutar pelo seu amor. Acaba esperando-a na vila, enquanto cuida dos seus habitantes e dos pais de Deolinda. Mas nesta história nem tudo é o que parece e, aos poucos, os segredos vão sendo revelados… A escrita de Mia Couto é absolutamente brilhante, poética, doce e quase ingénua. A história, traz-nos alguns segredos sórdidos, negros, pesados; mas ainda assim o livro não perde a sua aura doce, como se em tudo na vida o mais importante fosse sempre a poesia. É uma história bonita e pesada, que surpreende. Um livro que se lê de um trago e que, apesar da temática, nos deixa de coração cheio. Muito, muito bom. Livro recomendado. 5*
Irão
Persépolis
Marjane Satrapi

Marjane era uma criança quando, em 1979, o Irão começa a mudar. O Xá é deposto, nas ruas reina a revolução e começa a instaurar-se o fundamentalismo. Com 10 anos, Marjane é uma menina como outra qualquer, que tem a sorte de ter nascido numa família que a quer salvaguardar, proteger e que quer que ela estude e perceba o mundo onde vive. Mas não é fácil conviver com a sociedade que os rodeia… Persépolis é uma autobiografia em formato de novela gráfica. É um livro que retrata muito bem a infância da autora e o seu contexto difícil, que nos mostra como é a vida num país em luta contra o fundamentalismo religioso e as dificuldades que há em crescer, em ser mulher e em ser pessoa, naquele meio. Tenho de admitir que graficamente este não é o meu estilo preferido de novela gráfica. A preto e branco e com um desenho muito mecânico, é um livro em que eu tenho alguma dificuldade de manter a concentração. No entanto, este é sem dúvida um livro extremamente importante, que nos dá a conhecer uma realidade muito díspar da nossa, muito dura e sobre a qual todos deveríamos ler. Livro recomendado. 4*
Portugal
Satânia – Novelas
Judith Teixeira

Judite dos Reis Ramos Teixeira, também conhecida como Judith Teixeira ou Lena de Valois nasceu a 25 de janeiro de 1880 em Viseu e faleceu a 17 de maio de 1959 em Lisboa. Publicou três livros de poesia e um livro de contos, e em 1925 lançou a revista Europa, de que saíram três números. Judith Teixeira foi alvo de polémica pelo tom homossexual e erótico dos seus escritos. Causou escândalo, morreu quase em anonimato e ainda hoje é uma escritora pouco conhecida da maioria das pessoas. Em Satânia temos acesso a duas novelas desta autora, Satânia e Insaciada, e a uma conferência de Judith intitulada De Mim, onde a autora explicou o motivo dos seus escritos. É um livro curto, para ler pausadamente, de uma escrita muito poética, erótica e romântica. É uma obra que prende o leitor mas de uma maneira um pouco diferente do habitual, um livro que nos faz mergulhar numa autora apaixonante e renegada, controversa e diferente. Livro recomendado. 4*
Reino Unido
Orlando
Virginia Woolf

Em Orlando: uma biografia, Virginia Woolf conta-nos a história de um jovem aristocrata que vive 30 anos enquanto homem e depois… se torna uma mulher. Um livro repleto de ironia, que é uma carta de amor e, mais do que tudo, um pensar sobre as diferenças entre os sexos. Orlando é um livro verdadeiramente apaixonante. Uma história que cativa, que fala de amor e de género, de igualdades e desigualdades. A naturalidade com que Orlando deixa de ser homem para se tornar mulher e todas as personagens e o leitor o aceitam tornam este livro em algo verdadeiramente excepcional. É também um livro que se lê muito bem, sem se tornar demasiado pesado ou exaustivo. Esta obra foi sem dúvida um romper de amarras no seu tempo, uma obra transgressora e bem humorada, moderna e ousada. Virginia Woolf era sem dúvida uma mente brilhante e à frente do seu tempo, que dizia o que tinha a dizer. Livro preferido. Recomendado. 5*
India
Os Versículos Satânicos
Salman Rushdie

Ahmed Salman Rushdie nasceu a 9 de junho de 1947 em Bombaim, Índia, mas cedo se mudou para Londres. Cresceu no seio da religião muçulmana. Os Versículos Satânicos não foi o seu primeiro livro mas é provalmente aquele pelo qual é mais conhecido. Após a publicação desta obra, em 1989 o autor viu-se envolvido numa enorme controvérsia. O texto foi considerado ofensivo à religião e ao profeta Maomé e o autor foi alvo de uma fatwa que o condenava à morte por apostasia. Em 2022 Salman Rushdie foi alvo de um atentado que o deixou cego de um olho e com uma mão paralisada. A única coisa que eu sabia sobre Os Versículos Satânicos antes de começar esta leitura, além dos contornos muito gerais da história, é que este era um livro sobre religião. E sim, de facto, a religião encontra-se lá ao longo de todo o livro, de uma ponta a outra, constantemente. Mas este não é apenas um livro sobre religião. É um livro que nos fala de várias religiões e que nos fala sobre a condição de emigrante num país estrangeiro. É um livro sobre muitos tipos de preconceitos, sobre muitos crimes e muitos problemas que a sociedade enfrentava e continua a enfrentar. É um livro sobre amor, sobre ódio e sobre autoconhecimento e autodescoberta. Não sei se conheço mais algum livro que consiga ser tão abrangente como este é. E, ao mesmo tempo, é um livro bastante especifíco. A determinada altura precisei de parar a leitura, respirar fundo, e pesquisar. Porque não conseguia acreditar que este livro me estava a falar de uma questão que me era tão pessoal, de uma forma tão crua, sem que eu tivesse visto aquilo a vir na minha direcção. E não encontrei absolutamente nada, em todas as opiniões que vi. Os Versículos Satânicos foi uma obra que me fez revisitar sítios que eu não esperava revisitar. Foi um livro que me magoou e me apaixonou. Foi um livro que me conseguiu recordar a enorme sorte que eu tenho, apesar de tudo, por ter nascido no país em que nasci e no contexto em que nasci. É uma leitura extremamente dificil, quer pela enorme quantidade de conteúdo que tem quer pela forma como está escrito. Os tempos mudam de parágrafo para parágrafo, as personagens mudam de nome e de forma sem qualquer aviso e distinguir o real e a metáfora é uma tarefa quase hérculea. Atrevo-me a dizer que grande parte dos leitores que leram este livro não o compreenderam totalmente. E mais: acredito que ele não é um livro que deva ser compreendido por toda a gente. O acto da escrita deste livro foi, na minha opinião, um acto de uma coragem imensa. Não considero correcto, enquanto leitora, afirmar que determinado livro é o livro de uma vida. Livros há muitos, e nós não lemos hoje da mesma forma que lemos ontem ou que leremos amanhã. Mas se todos nós, enquanto leitores, tivermos um conjunto de livros que são os livros da nossa vida, então posso afirmar com toda a certeza que este é um dos meus.
França
Uma Paixão Simples
Annie Ernaux

Em Uma Paixão Simples Annie Ernaux fala da fogosa paixão que viveu durante algum tempo com um homem casado. Uma paixão simples que se formos bem a ver talvez não seja assim tão simples mas de que a autora nos fala com uma simplicidade maravilhosa. Nesta obra a escrita é muito leve e saborosa, fácil de ler e o livro é tão pequeno que ficamos facilmente a querer mais. Mais do que uma história em si, este livro é quase um desabafo, um texto que pode ser lido em tom confessional. Annie Ernaux traz-nos um retrato muito intimo dos seus sentimentos e daquele amor que viveu de forma tã intensa e tão fugaz. À luz do tempo que passou acaba por fazê-lo também com um certo distanciamento, o que o torna ainda mais interessante. Pessoalmente, preferi O Acontecimento, que li há uns meses. Esta obra é mais simples, mais singela e, diria eu, mais fácil de incorporar e de viver, apesar de tudo. Mas é uma obra muito boa. Recomendo. 4*