
“(Há uma dúzia de anos, através do Le Monde, tomei conhecimento do suícidio de Soeur Sourire. O jornal informava que, depois do enorme sucesso de Dominique, ela sofrera toda a espécie de desgostos na sua ordem religiosa, resolvera abandoná-la, acabara por ir viver com uma mulher. A pouco e pouco deixara de cantar, tendo caído no esquecimento. Bebia. Este resumo perturbou-me. Parecia-me que aquela mulher em rutura com a sociedade – que renunciara ao sacerdócio, que era mais ou menos lésbica, alcoólica, que desconhecia aquilo em que um dia se viria a transformar – era a mesma que me acompanhava através das ruas de Martainville quando eu me sentira só e perdida. Estavamos unidas por um mesmo desamparo, que só não era coincidente no tempo. E naquela tarde, eu fora buscar coragem para viver à canção de uma mulher que, mais tarde, se perderia ao ponto de procurar a morte. Desejei ferozmente que, apesar de tudo, ela tivesse sido minimamente feliz, e que nas noites de whisky, já conhecendo o significado da palavra foder, ela tenha acreditado que, em relação às santas irmãs, ela é que, por fim, as tinha fodido. Soeur Sourire faz parte dessas mulheres que nunca conheci, mortas ou vivas, reais ou não, com quem sinto ter, apesar de todas as diferenças, algo em comum. Elas formam em mim uma cadeia invisível onde convivem artistas, escritoras, heroínas de romance e mulheres da minha infância. Tenho a sensação de que a minha história faz parte delas.)“

Annie Ernaux nasceu em Lillebonne a 1 de setembro de 1940. Foi a vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2022.
Em O Acontecimento conhecemos uma jovem estudante de 23 anos que descobre que está grávida. No tempo da acção, em 1963, a gravidez de uma rapariga solteira era algo muito mal visto. Ela sabe, desde o primeiro momento, que a sua única solução é um aborto: não quer nem está preparada para ser mãe. No entanto o aborto é também ilegal e muito, muito perigoso. Acompanhamos então a jornada da personagem em busca de uma forma de abortar…
Annie Ernaux foi a vencedora do nobel “pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”. Neste momento, após ter lido esta obra, parece-me que “coragem e acuidade clinica” são de facto as melhores expressões para a descreverem. Que livro!
É uma obra pequena, de apenas 87 páginas. A escrita é deliciosa, forte e sedutora, vagueia entre a situação da personagem-narrador que nos surge em forma de memória e alguns outros pensamentos que a personagem vai tecendo.
É um livro fácil de ler, mas não é um livro fácil de digerir. Eu terminei a leitura verdadeiramente agoniada com as descrições da personagem, com a sua situação, com a sociedade. É um livro que nos deixa em alvoroço e nos dá a volta ao estômago.
Possivelmente uma das melhores leituras do ano.
Muito recomendado. 5*