Os livros de poesia da minha estante [bookshelf tour 2020]

Hoje estamos aqui para mostrar um pouco das nossas estantes. Já percebemos que existe uma certa curiosidade em relação a elas, e tudo bem. Por isso ao longo das próximas semanas vamos mostrar o que temos nas nossas prateleiras (quase tudo, pelo menos). Quem sabe não encontram por aqui algum livro que vos desperte ainda mais a vontade de ler? Vamos a isto!

Começamos com os livros de poesia, que eu adoro…

 

20 anos de poesia – Ary dos Santos

20 anos de poesia de José Carlos Ary dos Santos

Este é um dos meus preferidos e foi bastante difícil de encontrar: está esgotado em todo o lado. Acabei por dar com ele num alfarrabista. José Carlos Pereira Ary dos Santos nasceu em Lisboa a 7 de Dezembro de 1937 e faleceu em  Lisboa a 18 de Janeiro de 1984. Foi poeta e declamador. Publicou 20 Anos de Poesia em 1983. Este é um livro que reúne alguns dos seus melhores poemas.

A Terra

É da terra sangrenta. Terra Braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.

Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
umas vezes petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante

Porque a terra não é de quem trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia

Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro puder respirar
com as narinas dum cavalo à solta

Quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.

Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria da força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.

Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpora dos homens caldeados
por pó e chuva por excremento e vento
mas por sua vontade libertados.

Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.

As entranhas da terra hão-de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução.

[…]

 

***

Livro de Soror Saudade

Wook.pt - Livro de Soror SaudadeLivro Físico

Florbela Espanca, baptizada como Flor Bela Lobo, e que opta por se autonomear Florbela d’Alma da Conceição Espanca, foi uma poetisa portuguesa nascida a 8 de Dezembro de 1894 em Vila Viçosa e que faleceu a 8 de Dezembro de 1930 em Matosinhos. O livro de Soror Saudade foi publicado pela primeira vez em 1923.

 

Fanatismo

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist’rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!…

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!…”

 

***

Só – António Nobre

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António Pereira Nobre, mais conhecido como António Nobre, foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista da geração finissecular do século XIX português. Nasceu a 6 de Agosto de 1867 no Porto e faleceu a 18 de Março de 1900 na Foz do Douro. O livro Só foi publicado pela primeira vez em Paris em 1892 e é conhecido como o livro mais triste da língua portuguesa. É marcado pela lamentação e pela nostalgia, com uma fina auto-ironia.

 

À Luz da Lua!

Iamos sós pela floresta amiga,
Onde em perfumes o luar se evola,
Olhando os céus, modesta rapariga!
Como as crianças ao sair da escola.

Em teus olhos dormentes de fadiga,
Meio cerrados como o olhar da rola,
Eu ia lendo essa ballada antiga
D’uns noivos mortos ao cingir da estola…

A Lua-a-Branca, que é tua avozinha,
Cobria com os seus os teus cabellos
E dava-te um aspeto de velhinha!

Que linda eras, o luar que o diga!
E eu compondo estes versos, tu a lel-os,
E ambos scismando na floresta amiga…

 

***

Antologia Poética – Miguel Torga

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Ebook

Adolfo Correia da Rocha, conhecido pelo pseudónimo Miguel Torga, foi um dos mais influentes poetas e escritores portugueses do século XX. Torga destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios. Nasceu a 2 de Agosto de 1907 em São Martinho de Anta e faleceu a 17 de Janeiro de 1995, em Coimbra. A sua poesia é a poesia da terra, do povo, da humildade.

 

Depoimento

Deponho
no processo do meu crime.
Sou testemunha
E réu
E vítima
E juiz
Juro

Que havia um muro,
E na face do muro uma palavra a giz.
MERDA! – lembro-me bem.
– Crianças……
– disse alguém que ia a passar.
Mas voltei novamente a soletrar
O vocábulo indecente,
E de repente
Como quem adivinha,
Numa tristeza já de penitente
Vi que a letra era minha…

 

***

O Livro de Cesário Verde

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José Joaquim Cesário Verde foi um poeta português, considerado um dos pioneiros da poesia do século XX em Portugal. Nasceu a 25 de Fevereiro de 1855 em Lisboa e faleceu a 19 de Julho de 1886 também em Lisboa. O Livro de Cesário Verde é uma das suas obras mais conhecidas e foi publicado pela primeira vez em 1887. O livro é recomendado pelo plano nacional de leitura para o ensino secundário.

Impossível

Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.

Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.

Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.

Posso sentir-te em fogo, escandescida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de verão.

Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme,
E os mélicos pudins.

Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo,
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraque

E até posso com ar de rei, que o sou!
Dar-te cautelas brancas, minha rola,
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola,

Já vês, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.

Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o Sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China,
O nosso chocolate.

E podemos até, noites amadas!
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas,
No mesmo travesseiro.

Posso ser teu amigo até à morte,
Sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte,
Eu nunca poderei!

Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou,
Lá essa é que eu não caio!

 

***

Este livro que vos deixo… – António Aleixo

Wook.pt - Este livro que vos deixo - Livro 1Livro 1
Livro 2

António Fernandes Aleixo foi um poeta popular português nascido a 18 de Fevereiro de 1899 em Vila Real de Santo António e falecido a 16 de Novembro de 1949 em Loulé. Compunha e improvisava nas mais diversas situações e oportunidades, umas vezes cantando numa feira ou festa de aldeia, outras, a pedido de amigos e conhecidos. Era um poeta do povo, que guardava cabras, vendia cautelas e fazia versos de improviso.

Porque o Povo Diz Verdades

Porque o povo diz verdades,
Tremem de medo os tiranos,
Pressentindo a derrocada
Da grande prisão sem grades
Onde há já milhares de anos
A razão vive enjaulada.

Vem perto o fim do capricho
Dessa nobreza postiça,
Irmã gémea da preguiça,
Mais asquerosa que o lixo.

Já o escravo se convence
A lutar por sua prol
Já sabe que lhe pertence
No mundo um lugar ao sol.

Do céu não se quer lembrar,
Já não se deixa roubar,
Por medo ao tal satanás,
Já não adora bonecos
Que, se os fazem em canecos,
Nem dão estrume capaz.

Mostra-lhe o saber moderno
Que levou a vida inteira
Preso àquela ratoeira
Que há entre o céu e o inferno.

 

***

Folhas Caídas e Flores Sem Fruto – Almeida Garret

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João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, mais tarde 1.º Visconde de Almeida Garrett, foi um escritor e dramaturgo romântico, orador, par do reino, ministro e secretário de estado honorário português. Nasceu a 4 de Fevereiro de 1799 no Porto e faleceu a 9 de Dezembro de 1854 em Lisboa. Flores sem Fruto foi publicado pela primeira vez em 1845 e Folhas Caídas em 1853.

Destino

Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Florece!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?

Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem…
Ai!, não mo disse ninguém.

Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino .
Vim cumprir o meu destino…
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

 

 

 

 

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