“A certa altura da festa, a música movimentou os convidados. Todos dançaram, esquecendo-se de onde estavam. As diferenças desapareceram. Não havia mais doentes, nem os considerados sãos. Havia apenas gente que se mostrou capaz de gostar de gente. Quando tocou samba, Tonho se levantou. Venceu a timidez e dançou por mais de meia hora com um pandeiro nas mãos. Seus passos eram ritmados, o rosto ficou transfigurado de emoção. Não havia nem sombra de sua deficiência. Roubou a cena e hipnotizou a plateia. Ganhou lucidez impressionante. Seu coração batucava descompassadamente dentro do peito. Estava inundado de felicidade. Não sabia que poderia sentir alguma coisa diferente de medo, dor e rejeição.”
“Em 2011, Sônia realizou sua maior ousadia. Para quem passou cinquenta anos presa nos porões da loucura, conhecer Porto Seguro, na Bahia, foi uma dádiva na vida dessa mulher. De uma única vez, ela experimentou o gosto da liberdade, a sensação de andar de avião, quase como se tivesse “ganhado asas”, e de ver o mar. Teve medo ao mirar aquele mundão de água, no qual os olhos não alcançam o fim. Conheceu, então, o prazer das boas descobertas, sentindo-se inteira pela primeira vez em sessenta e um anos de vida. Começava a tomar consciência da sua humanidade, era quase feliz.”
“O repórter luta contra o esquecimento. Transforma em palavra o que era silêncio. Faz memória. Neste livro, Daniela Arbex devolve nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados de tal”. Eram um não ser. Pela narrativa, eles retornam, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. Ou ainda Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que ficou vinte e um dos trinta e quatro anos de internação mudo porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava.”
Daniela Arbex nasceu a 19 de Abril de 1973 em Juiz de Fora, Minas Gerais. É uma jornalista brasileira dedicada à defesa dos direitos humanos. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 1995, iniciou a carreira no jornal Tribuna de Minas, do qual foi repórter especial por mais de duas décadas.
Em Holocausto Brasileiro, um livro-reportagem, Daniela traz-nos a história do Colónia, um hospício brasileiro que se situava na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Apesar de ser considerado um hospício, calcula-se que cerca de 70% das pessoas internadas não sofriam de nenhuma doença mental. O Colónia era, na verdade, um local de despejo onde iam parar as meninas violadas pelos patrões que acabavam por engravidar, os homossexuais, os epilépticos, as mulheres que os maridos não queriam mais, as filhas que perdiam a virgindade e os pais queriam despachar, os alcóolicos, as prostitutas, e muitos outros. Calcula-se que tenham passado por lá cerca de 60 000 pessoas.
No Colónia, a comida escasseava. O espaço era pouco para tanta gente e muitos andavam nus por falta de roupa, apesar do frio da zona. Comiam ratos e bebiam água do esgoto. Quando se rebelavam ou criavam conflitos, o castigo eram os choques eletricos, a que muitos não sobreviviam. Chegavam a morrer 16 pessoas por dia, devido às condições.
Eu já tinha ouvido falar desta obra várias vezes, em vídeos de booktubers brasileiros, mas confesso que não conhecia a edição portuguesa. Encontrei-a por acaso na biblioteca, e li-a em menos de nada. Costumo ter alguma dificuldade em ler livros-reportagem, mas este lê-se bem. Já os factos que nos traz, são de arrepiar. Pensar que a crueldade humana chega a tal ponto é aterrorizante. Como é que um pai consegue enviar uma filha para um lugar assim e continuar a viver consigo mesmo? Como é que os médicos, enfermeiros e funcionários dormiam à noite?
É um livro impressionante, com muitas fotografias que ilustram muito bem os factos e nos ajudam a acreditar que foi mesmo verdade. Sem elas seria até difícil de imaginar. Terminei o livro a pensar em quantos sítios assim terão existido mais. Não me parece que este fosse o único. A crueldade humana é incrível e este é um daqueles livros que toda a gente devia ler, quer para relembrar o passado, que para evitar que volte a acontecer.
Querem saber um pouco mais? Sugiro este video.
Livro recomendado!