“O vermelho é sempre quente, diz, e esbofeteia-me para provar que a dor é uma mancha encarnada. Tenho de saber que o verde das reinetas de setembro azeda debaixo da língua e cheira como as florestas que cercam o shtetl; a terra é castanha, mas torna-se escura quando chove, e os paus ardidos no inverno são da cor dos fatos dos homens e do cabelo da minha mãe. São pretos, insiste, como o negrume que vejo em todas as horas do dia. Mas eu não vejo, Eryk, nem sequer o negrume. Como te explico que a escuridão não é igual ao nada?”
“Com o tempo, aprenderiam que, no campo, a sopa sabia sempre à sopa de ontem, sabia sempre a barro, e dava para ouvir as areias estalarem no meio dos dentes. Mas aquela estava quente, a melhor sopa do mundo, e, assim que terminaram, ainda usaram os dedos para rapar a gamela.”
“Assim que regressasse, haveria de fazer como os demais e lutar, qual animal, por um copo ou uma colher. Também poderia levar aquilo a bem e ajustar, negociar sem qualquer escrúpulo, até porque no campo tudo estava tabelado: uma malga por rapar era o mesmo que um cigarro, umas folhas de papel para escrever dava para outras tantas sopas, e por cerca de meio pão e um bocado de lábia levava-se um garoto para o beliche.”
Como pode um cego reconhecer alguém que não fala?
Neste livro João Pinto Coelho conta-nos a história de Erik, o cristão, Yankel, o judeu cego de nascença e Shionka, a filha da bruxa.
No começo do livro conhecemos Yankel já idoso, na sua livraria em Paris, onde pede às amantes que lhe leiam na cama. Erik surge então como um escritor conhecido, que quer escrever um último livro sobre as suas vidas e precisa das memórias do amigo de infância. Com ele vem Vivienne, a sua mulher.
É então que os personagens começam a contar e a recordar: A terra onde cresceram, no nordeste da Polónia, dividida irmanamente entre judeus e cristãos. As pessoas que, em tempos, julgaram conhecer. As aventuras dos dois homens enquanto ainda eram crianças. O aparecimento de Shionka, a filha da bruxa, nas suas vidas. A forma como ambos se apaixonaram por ela e a escolha da rapariga. A guerra. O manicómio Pasternak.
Este é um livro brilhante que nos agarra desde a primeira página. Muito bem escrito, faz-nos logo desde o inicio entrar no universo daqueles personagens tão humanos, tão realistas, cheios de defeitos e virtudes. A parte histórica está incluída, mas de uma forma que mal damos por ela. Não é forçada, nada é forçado nesta história.
Muitos livros que falam sobre grandes tragédias ou grandes crimes como o é o holocausto e a II Grande Guerra têm tendência a focar-se exclusivamente nesse ponto. Por vezes lá há alguma introdução às personagens, que normalmente não passa de dois ou três capítulos. O que achei mais interessante neste livro foi exactamente o facto de isso não acontecer.
Aqui, conhecemos as personagens num tempo bem anterior à guerra. Conhecemos as suas dores, as suas dificuldades e alegrias. Vemo-los crescer. Só depois surge o rumor da guerra, que não se demora. No fim vem a vida posterior à tragédia, à separação.
O autor quis ainda mostrar-nos que os nazis não foram os únicos assassinos na guerra. Na verdade, os nazis pouco espaço têm neste livro. São mais um boato que uma realidade. É claro que há o campo de concentração, mas mal vemos os seus portões.
Eu tenho lido muitos livros sobre o holocausto e a II Grande Guerra. Este é, de longe, um dos melhores que já li.
Livro super recomendado!