
“Logo na noite que se seguiu ao êxodo daquela gente, os gatos, que andavam a caçar nos campos, regressaram e ficaram a miar às portas. E, como ninguém atendesse, os gatos penetraram nas casas vazias e percorreram, miando, os quartos desabitados. Depois, voltaram para os campos e, desde então, transformaram-se em gatos selvagens e passaram a caçar guaxinins e ratazanas e a dormir de dia nas cavidades do solo. Quando a noite chegava, os morcegos, que se haviam ocultado nos vãos das paredes com medo da luz do dia, esvoaçavam livremente nos quartos vazios e depois tornavam a ocultar-se nos cantos escuros e ali ficavam durante todo o dia, com as asas fechadas, de cabeça para baixo, entre o vigamento, e o cheiro da sua urina enchia as casas vazias. Os ratos entravam e acumulavam provisões aos cantos, nas caixas e ao fundo das gavetas, nas cozinhas. E as doninhas entravam e caçavam os ratos, e as corujas-do-mato esvoaçavam, guinchando, e tão depressa entravam como saíam. Veio então um aguaceiro. O joio brotou nos degraus das portas, zona que outrora lhe fora proibida e a relva crescia por entre as varandas e as portas de entrada. As casas estavam abandonadas e as casas abandonadas ruem rapidamente. Começaram, pois, a abrir fendas nos revestimentos de madeira, a partir de buracos de pregos enferrujados. A poeira, acamando-se no chão, era perturbada apenas pelas patas dos ratos, das doninhas e dos gatos. Certa noite o vento arrancou uma ripa, lançando-a ao chão. Outro golpe de vento penetrou na abertura deixada pela ripa, e arrancou mais três, depois mais doze. O sol do meio-dia brilhou e lançou uma mancha doirada no pavimento, através do enorme buraco do teto. Os gatos selvagens regressavam à noite dos campos, mas já não miavam nos degraus. Moviam-se como sombras de nuvens, que passam em frente da Lua, e esgueiravam-se para dentro dos quartos. E, nas noites de ventania, as portas batiam com estrondo nos umbrais e as cortinas esvoaçavam, esfarrapadas, de encontro às vidraças partidas.”

John Steinbeck nasceu a 27 de fevereiro de 1902 na Califórnia e faleceu a 20 de dezembro de 1968 em Nova Iorque. Foi escritor, membro da Ordem DeMolay e recebeu o Nobel da Literatura em 1962.
Em As Vinhas da Ira acompanhamos uma família pobre americana que, à época da Grande Depressão e devido a fortes tempestades de areia e ao capitalismo que começava a imperar na zona, é obrigada a sair das terras que sempre tinham conhecido como suas e migrar para a Califórnia, onde se dizia haver mais trabalho. Um problema que afetou cerca de meio milhão de americanos. O livro As Vinhas da Ira, publicado cerca de dez anos depois deste fenómeno, chocou e escandalizou a sociedade da época.
As Vinhas da Ira foi a leitura coletiva mais recente da nossa Comunidade de Leitura. E ainda bem que o lemos em grupo, pois esta é uma leitura que ganha imenso com uma dinâmica desse género.
É um livro com quase 600 páginas, denso, repleto de informação, repetições e comparações, que nos conta uma época muito dura da história americana. Não é uma leitura fácil, mas é uma leitura importante e marcante. A escrita do autor é verdadeiramente genial: desenvolve nesta trama diversas personagens, todas complexas, com os seus próprios motivos, duvidas e personalidades; fala de pobreza, de pobreza extrema, de politica, de capitalismo, de revolta e de subserviência. Fala sobre o desespero e sobre o que é não ter mais nenhuma opção além da pior opção. O livro desenrola-se intercalando capítulos sobre as personagens principais e a sua história e capítulos intermédios que nos ajudam a compreender melhor o mundo que as rodeava.
É um livro que marca a história americana ao representá-la de forma nua e crua. É verdadeiramente impressionante.
Livro essencial. Muito recomendado. 5*