“À noite, leio Lolita na cama, a devorar desalmadamente embalagens de bolachas água e sal, com uma almofada a postos para esconder a capa do livro, se os meus pais abrirem a porta do quarto. Enquanto o vento bate na vidraça, viro as páginas e sinto um ardor lento dentro de mim, carvões incandescentes, brasas vermelho-escuras. Não é só o enredo, a história de uma rapariga aparentemente comum que, na verdade, é um demónio mortífero disfarçado, e o homem que a adora. É o facto de ele mo ter dado. Aqui há todo um novo contexto para o que estamos a fazer, uma nova perspetiva quanto ao que ele quer de mim. Que conclusão tirar além da óbvia?
Ele é Humbert, eu sou Dolores.”
(p. 75)

Kate Elizabeth Russel nasceu em 1984 nos Estados Unidos da América. É formada em Escrita Criativa pela Universidade do Kansas.
Nesta obra Vanessa Wye é uma adolescente de 15 anos que estuda num colégio interno, longe da família. É lá que conhece Jacob Strane, o seu professor de inglês, com quem acaba emotiva e sexualmente envolvida. Anos mais tarde, quando Vanessa é já adulta, várias antigas alunas de Strane juntam-se e acusam-no de assédio sexual. Mas Vanessa não acredita nelas. Para ela, aquilo que viveu não foi abuso mas sim uma história de amor. Ou será que não? Será só uma defesa?
Este não é um livro fácil de falar. Não é um livro fácil de ler. Não é um livro para todos. É difícil de engolir, de mastigar, de digerir. Bastante gráfico em algumas partes, para alguns talvez demasiado explícito. Eu admito que não foi uma leitura fácil, mas foi uma leitura que me marcou fortemente.
Lolita (de que falámos aqui) é largamente referenciado nesta obra, assim como várias outras obras dentro da temática. De facto, a intertextualidade que este livro nos traz é verdadeiramente notável e pode ser bastante interessante em estudos literários.
Tal como Humbert Humbert, Strane é professor. E tal como Humbert Humbert, ele é pedófilo.
Mas se em Lolita o leitor é manipulado pelo criminoso, pelo homem adulto que gosta de violentar a jovem, em Minha Sombria Vanessa a história é contada por Vanessa, a adolescente abusada e que acredita sinceramente que o que viveu foi uma história de amor. E isso é terrívelmente impressionante, o ponto a que alguém – uma vitima – chega, para nem sequer perceber o que lhe aconteceu. Nabokov, em Lolita, quase convence os leitores mais desavisados de que a história retrata uma história de amor. Em Vanessa, a nuvem de dúvida é bastante mais ténue, principalmente quando prestamos atenção às cenas de sexo. Mas não deixa de ser curioso como a própria Vanessa se torna numa leitora desavisada, iludida, que cai na teia de Nabokov e vê uma história de amor entre Humbert e Lolita.
Minha sombria Vanessa é uma história verdadeiramente impressionante, implacável, chocante. Bastante gráfica, é tão difícil parar de ler como é continuar a ler. Dói profundamente perceber aquilo que esta jovem passou e ver como isso marcou a sua vida e a de todos os que a cercam. Sabemos que é ficção, mas a verdade é que isto também acontece na realidade. Dá a volta ao estômago até mesmo aos mais fortes, principalmente se ticerem filhas.
Recomendado, muito recomendado, eu sei que não me vou esquecer deste livro e provavelmente ainda voltarei a ele. Mas com cautela porque, lá está, não é um livro para todos. 5*