Vinte Anos de Poesia – Ary dos Santos

Quem me conhece pessoalmente sabe que eu sou fã de poesia. Muito. Entretanto, não costumo falar muito de poesia aqui no blog, por esquecimento, por não saber o que dizer. Mas este livro não dava para deixar passar.

Em Vinte Anos de Poesia, publicado pela primeira vez em 1983, lemos alguns dos melhores poemas de José Carlos Ary dos Santos. Não que seja fácil escolher “os melhores”. São todos óptimos. Ary dos Santos era um poeta libertário, revolucionário, que não dizia meias palavras ou meias verdades. Este livro está escrito sem filtros. O que tem que ser dito é dito e Ary chamava mesmo os bois pelos nomes.

Como já disse, quem me conhece sabe que eu sou fã de poesia. No entanto pouca poesia me toca tanto como a de Ary. Os versos dele são um grito de liberdade. Ele era também um declamador fascinante e os seus versos deram origem a algumas das grandes músicas portuguesas.

Um livro sem dúvida muito recomendado!

5*

Arte Peripoética

Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de ser
contra a maneira do tempo
esta maneira de ver
o que o tempo tem por dentro.
Aristóteles diria
entre dois goles de chá
que o melhor ainda será
deixar o tempo onde está
pô-lo de perto no tema
e de parte na poesia
para manter o poema
dentro da ordem do dia.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só.
Ele sabia que o poeta
depois de tudo inventado
depois de tudo previsto
de tudo vistoriado
teria de fazer isto
para não continuar
com que já estava acabado
teria de ser presente
não futuro antecipado
não profeta não vidente
mas aço bem temperado
cachorro ferrando o dente
na canela do passado
adaga cravando a ponta
no coração do sentido
palavra osso furando
pele de cão perseguido.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de riso
que é a mais original
forma de se ter juízo
e ser poeta actual.
Aristóteles, visita
da casa da minha avó,
também diria antes só
do que mal acompanhado
antes morto emparedado
em muro de pedra e cal
aonde não entre bicho
que não seja essencial
à evasão da palavra
deste silêncio mortal.

Retrato de António Botto

Um efebo cavalo
uma nereide potro
o falus ou o halo
és o outro   és o outro!

És a grande diferença
de seres intermitente
mar de mágoa presença
dos deuses entre a gente.
És o Olimpo limpo
pela água da fonte
o azulíneo limbo
da linha do horizonte.

Um efebo cavalo
uma nereide potro
o falus ou o halo
és o outro   és o outro!

É para além do pólo
magnético do cio
teu desvio de Apolo
a tiritar de frio
É para lá que vives
É para lá que morres
e cantando proíbes
desesperado corres

Um efebo cavalo
uma nereide potro
o falus ou o halo
és o outro   és o outro!

És o silvo   o apito
o encoberto dos cais
és o mito   és o grito
de quem não pode mais

Um efebo cavalo
uma nereide potro
o falus ou o halo
és o outro   és o outro!

Isto eu diria acaso isso ou isso
se a palavra que temos nos chegasse
para clamar poeta   flor   justiça
como se amor, António, não bastasse!

És a simples fragata
chamando o marinheiro
és a gota   és a gata
de puro corpo inteiro.
A menina varina
sardinheira de Alfama
e às vezes a vagina
que um homem tem na cama.

A Terra

É da terra sangrenta. Terra Braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.

Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
umas vezes petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante

Porque a terra não é de quem trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia

Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro puder respirar
com as narinas dum cavalo à solta

Quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.

Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria da força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.

Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpora dos homens caldeados
por pó e chuva por excremento e vento
mas por sua vontade libertados.

Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.

As entranhas da terra hão-de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução.

[…]

 

 

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