
A avenida está saturada de homens e mulheres; é o orgão central do novo ser de mil cabeças. Em fileiras de setenta ou mais pessoas lado a lado, o povo avança gravemente para os portões da Imperatriz. Diante dos quais os guardas do palácio estão à espera, em três filas, deitados, de joelhos e em pé, com as metralhadoras a postos. O povo sobe a encosta em direcção às espingardas; setenta seres humanos de cada vez chegam ao alcance da linha de tiro; as armas matraqueiam e eles morrem, e depois os setenta seguintes passam por cima dos corpos dos mortos, as armas soltam nova gargalhada, e a colina dos mortos aumenta. Os que vêm de trás começam, por seu turno, a subi-la. Nas soleiras sombrias das casas da cidade, há mães de cabeças cobertas, impelindo os filhos queridos para a parada, vai, sê mártir, faz o que é preciso, morre. «Vê só como eles me amam», diz a voz incorpórea. «Não há tirania no mundo que possa resistir à força deste amor lento e em marcha.»
«Isto não é amor», responde Gibreel, a chorar. «É ódio. Ela empurrou-os para os teus braços»
(RUSHDIE, 1989, p. 202)
O que é que não tem perdão?
O quê senão a trémula nudez de se ser intimamente conhecido por uma pessoa na qual não se confia? – E não é verdade que Gibreel viu Saladin em circunstâncias – assalto ao avião, queda, prisão – que fazem vir à tona os segredos da natureza de uma pessoa?
Ora bem. – Estamos a avançar alguma coisa? Deveremos dizer ainda que estes dois homens são caracteres de tipos radicalmente diferentes? Não poderiamos convir em que Gibreel, apesar do seu nome artístico e dos seus múltiplos papéis; e apesar das suas frases bombásticas acerca de renascimentos, recomeços, metamorfoses; – desejou permanecer, em grande medida, contínuo – ou seja, ligado ao seu passado e brotando dele; – que não escolheu nem a doença quase fatal nem a queda transmutadora; que no fundo receia acima de tudo os estados alterados em que os seus sonhos dominam e se infiltram na sua natureza desperta, tranformando-o nesse Gibreel angélico que não deseja ser; – de forma que a natureza dele ainda pode, quanto ao que agora nos interessa, ser descrita como «autêntica»… enquanto Saladin Chamcha é uma criatura de descontinuidades seleccionadas, uma reinvenção voluntária; sendo a sua revolta professa contra a história o que faz, no idioma por nós escolhido, ser «falso»? E não poderíamos ir mais longe e dizer que é essa falsidade de natureza que torna possível em Chamcha uma falsidade pior e mais profunda – chamemos-lhe «mal» – e que tal é a verdade, a porta, que nele foi aberta pela queda? – Enquanto Gibreel, para seguir a lógica da terminologia que adóptamos, deve ser considerado «bom» em virtude de querer permanecer, apesar de todas as vicissitudes, um homem no fundo intraduzido.
– Mas, e de novo mas: isto soa perigosamente, não é verdade, como uma falácia finalista! – Semelhantes distinções, assentando como não podem deixar de assentar numa ideia do carácter como algo (idealmente) homogéneo, não-hibrido, «puro» – concepção perfeitamente fantasiosa! – não podem, não devem, bastar-nos. Não! Temos de dizer uma coisa ainda mais dura: que o mal talvez não esteja sepultado tão fundo, tão abaixo das nossas superfícies, como gostamos de pensar que está. – Que na realidade pendemos para ele naturalmente, ou seja, não contra as nossas naturezas.
(RUSHDIE, 1989, p. 389)
O que ele rejeitava agora era um retrato de si próprio e de Gibreel como seres monstruosos. Monstruosos, porquê? Que coisa mais absurda. Havia no mundo monstros autênticos – ditadores responsáveis por massacres em massa, violadores de crianças. O Estripador de Avozinhas. (RUSHDIE, 1989, p. 372)

Ahmed Salman Rushdie nasceu a 9 de junho de 1947 em Bombaim, Índia, mas cedo se mudou para Londres. Cresceu no seio da religião muçulmana. Os Versículos Satânicos não foi o seu primeiro livro mas é provalmente aquele pelo qual é mais conhecido. Após a publicação desta obra, em 1989 o autor viu-se envolvido numa enorme controvérsia. O texto foi considerado ofensivo à religião e ao profeta Maomé e o autor foi alvo de uma fatwa que o condenava à morte por apostasia. Em 2022 Salman Rushdie foi alvo de um atentado que o deixou cego de um olho e com uma mão paralisada.
A única coisa que eu sabia sobre Os Versículos Satânicos antes de começar esta leitura, além dos contornos muito gerais da história, é que este era um livro sobre religião. E sim, de facto, a religião encontra-se lá ao longo de todo o livro, de uma ponta a outra, constantemente. Mas este não é apenas um livro sobre religião. É um livro que nos fala de várias religiões e que nos fala sobre a condição de emigrante num país estrangeiro. É um livro sobre muitos tipos de preconceitos, sobre muitos crimes e muitos problemas que a sociedade enfrentava e continua a enfrentar. É um livro sobre amor, sobre ódio e sobre autoconhecimento e autodescoberta. Não sei se conheço mais algum livro que consiga ser tão abrangente como este é.
E, ao mesmo tempo, é um livro bastante especifíco. A determinada altura precisei de parar a leitura, respirar fundo, e pesquisar. Porque não conseguia acreditar que este livro me estava a falar de uma questão que me era tão pessoal, de uma forma tão crua, sem que eu tivesse visto aquilo a vir na minha direcção. E não encontrei absolutamente nada, em todas as opiniões que vi.
Os Versículos Satânicos foi uma obra que me fez revisitar sítios que eu não esperava revisitar. Foi um livro que me magoou e me apaixonou. Foi um livro que me conseguiu recordar a enorme sorte que eu tenho, apesar de tudo, por ter nascido no país em que nasci e no contexto em que nasci.
É uma leitura extremamente dificil, quer pela enorme quantidade de conteúdo que tem quer pela forma como está escrito. Os tempos mudam de parágrafo para parágrafo, as personagens mudam de nome e de forma sem qualquer aviso e distinguir o real e a metáfora é uma tarefa quase hérculea. Atrevo-me a dizer que grande parte dos leitores que leram este livro não o compreenderam totalmente.
E mais: acredito que ele não é um livro que deva ser compreendido por toda a gente.
O acto da escrita deste livro foi, na minha opinião, um acto de uma coragem imensa.
Não considero correcto, enquanto leitora, afirmar que determinado livro é o livro de uma vida. Livros há muitos, e nós não lemos hoje da mesma forma que lemos ontem ou que leremos amanhã. Mas se todos nós, enquanto leitores, tivermos um conjunto de livros que são os livros da nossa vida, então posso afirmar com toda a certeza que este é um dos meus.