Noite medonha, aquela!
O mar tanto engolia a caravela
Como a exibia à tona, desmaiada!
No abismo do céu nem uma estrela!
E a cruz de Cristo, a agonizar na vela,
Suava sangue sem poder mais nada!
A fúria cega tufão raivoso
Vinha das trevas desse Tenebroso
E varria a quimera de convés…
O mastro grande que Leiria deu
Era um homem de pinho, mais caiu
Quando um raio o abriu de lés a lés…
Novo guarda dos rumos da Nação,
O piloto guiava a perdição
Como um pai os destinos do seu lar…
Até que o lar inteiro se desfez.
Até que ao pai chegou também a vez
De fazer uma prece e descansar…
O gajeiro sem gávea, dessa altura
Que a alma atinge ao rés da sepultura,
Olhou ainda a bruma em desafio…
Mas a Sereia Negra, que cantava
No coração do mar, tanto chamava,
Que ele deu-lhe aquele olhar cansado e frio.
O naufrágio alargou-se ao mar inteiro.
E o corpo morto dum herói, primeiro
Cruzado da unidade deste mundo,
No dorso frio duma onda irada,
Mandou aos mortos, com a mão na espada,
Boiar o sonho, que não fosse ao fundo.
Miguel Torga