Os melhores do primeiro semestre de 2024

A palavra que resta
Stênio Gardel

Livro Físico

pois desde que parei com essa história, desde que decidi que o meu lugar nessa vida tinha que ter era a forma que eu trazia dentro de mim, foi que as cicatrizes que o senhor cravou perderam a fundura, ficaram só na pele, meu jeito, meu desejo não me doía mais, e eu pude olhar a vida desse outro lugar, mais alto, mais claro, claro que enfrentei gente, onde que se vive sem enfrentar gente?

Gente torta, povo imundo, foi isso que o pai lhe disse. Sujo. Não de terra, nem de lama, nem de areia e sangue como ele estava agora. Não era sujo na pele, do lado de fora. Era dentro, lá onde ele era. O ar que inspirava se tornava impuro, e Raimundo expirava podridão. Sujava a família, filho infeto, dela não devesse ter nascido. Imundice desgraçada que eu estou contaminando a vida deles, imundice que eu e Cícero fizemos, isso meu e de Cícero, que saía de nós dois e deixava a gente sebento, de enojar o mundo

Em A palavra que resta Stênio Gardel traz-nos a história de amor de Raimundo Gaudêncio e Cícero. Apaixonados na adolescência, estes dois jovens vivem na roça, no interior do Brasil, numa pequena povoação. Quando o seu amor é descoberto as famílias reagem brutalmente e os jovens acabam por ser separados, não sem antes Cícero deixar uma carta a Raimundo. Mas Raimundo não sabe ler e não quer dar a carta a ler a ninguém. Por isso guarda-a consigo mais de 50 anos, até que nos seus setenta anos decide finalmente aprender a ler para poder saber o que lhe escreveu Cícero. A palavra que resta é um livro escrito de uma forma um pouco diferente do habitual mas extremamente poético. É uma história que nos traz muita tristeza, que facilmente põe o leitor a chorar um pouco mas que ao mesmo tempo é uma história de uma imensa coragem e aceitação. Marcou-me muito pela forma como está escrita e pela forma clara e aberta como mostra ao leitor as dificuldades sentidas pela comunidade LGBTQIA+ ao longo da vida. O que é ainda mais triste é que podia, facilmente, ser uma história atual e real. O final não foi o que eu esperava e queria, mas consigo perceber porque o autor preferiu fazer assim. Ainda assim, gostava que tivesse terminado de outra forma. Muito recomendado. 5*

A arte de mergulhar
Lili Reinhard

Livro Físico

É assim que sei
o quanto te amo

Sempre que vejo
algo belo, desejo que
o vejas também

Lili Reinhart nasceu em Cleveland a 13 de setembro de 1996. É actriz, produtora, escritora e cantora. A arte de mergulhar é, podemos dizer assim, um livro de poesia extremamente simples. Os poemas são singelos e honestos e falam sobre amor, desgosto, saúde mental e muito mais. O que verdadeiramente toca nesta obra é exactamente isso: a forma simples que a escritora usa de dizer coisas tão tocantes e importantes. As ilustrações que acompanham os poemas são também assim: do mais simples possível, mas lindissimas. Um livro para nos relembrar o que é realmente importante, para ler com alma e coração e que promete conquistar e derreter qualquer leitor. Muito recomendado. 5*

Un vuelo de la rama al cielo
Olivia Cosneau e Bernard Duisit

Livro Físico

Un vuelo de la rama al cielo é um livro em espanhol (mas que podia ser em qualquer outra lingua) pop up, que promete encantar os pequenos pequenos leitores. É um conto simples e singelo mas muito bonito, para ser contado e cantado. Todo o livro é uma obra de arte, óptimo para horas do conto para os mais pequenos. Muito recomendado. 5*

O peso do pássaro morto
Aline Bei

Livro Físico

– não me importo – eu disse para ele – que seja breve
o nosso encontro
porque no tempo da minha
memória
somos pra sempre, não existe morrer dentro, é como
uma canção
as canções não morrem nunca porque elas moram
dentro das pessoas que gostam delas. você conhece
aquela da rua? se
essa rua
se essa rua fosse minha?
eu mandava eu mandava ladrilhar
com pedrinhas com pedrinhas de brilhante
para o meu
para o meu
Vento passar. nessa rua nessa rua tem um bosque, que
se chama que se chama solidão.
dentro dele dentro dele mora um
Vento
que roubou
que roubou meu
coração

Aline Bei nasceu em 1987 no Brasil. O peso do pássaro morto é o seu romance de estreia e foi vencedor do Prémio São Paulo de Literatura. Com uma escrita bastante diferente mas bastante encantadora, Aline Bei conta-nos nesta obra a história de uma vida, de uma menina mulher desde a sua infância até à sua velhice. Na adolescência, algo acontece a esta menina que muda a sua vida para sempre. É uma historia triste e pesada mas que vem relembrar-nos a importância das pequenas coisas e a beleza que podemos encontrar, apesar de tudo, na vida. É uma história que nos deixa com uma lágrima no canto do olho (ou um pouco mais que isso) em vários momentos, que nos marca e nos surpreende. E acaba por ser uma história de esperança e que nos relembra que somos todos humanos, com tuo o que isso tem de bom e de mau. Muito recomendado. 5*

Vemo-nos em Agosto
Gabriel García Márquez

Vemo-nos em Agosto

Livro Físico

Em Vemo-nos em Agosto conhecemos  Ana Magdalena Bach que todos os anos a 16 de agosto apanha o ferry que a leva até à ilha onde a mãe está enterrada e lá passa uma noite. No prefácio desta obra é logo dito ao leitor em que consistiu a sua escrita. Gabriel García Márquez sabia que seria o seu último livro e sabia que, em algumas coisas, poderia não fazer sentido. Daí o autor ter pedido que a obra não fosse publicada. Mas foi. Não vou entrar em debates e opiniões sobre se esta obra deveria ou não ter sido publicada. Consegui perceber, ao longo da leitura, ao que se referia o autor. Continua a ser Gabriel, mas já não é tão Gabriel. É, ainda assim, uma obra fabulosa. Curta, senti que queria continuar a ler mais e mais sobre Ana Magdalena Bach e é triste saber que nunca o poderei fazer. A escrita é sublime e a história é simultâneamente de uma enorme simplicidade e subtileza e simultâneamente surpreendente. A minha primeira reacção ao final foi um “não pode acabar assim”. Depois, percebi. Acho que foi um final brilhante. Muito, muito recomendado. 5*

Manifesto pelas identidades e famílias
João Costa

Livro Físico

Hoje somos um Portugal livre. Hoje somos um Portugal plural. E, quando nos relacionamos e nos abrimos à relação, a nossa identidade faz-se mais rica, porque se torna nas identidades dos nossos pares, dos nossos concidadãos. Hoje somos um Portugal plural. Somos o Portugal das centenas de línguas que se falam nas nossas ruas.

Para alguns, as convicções são tão fortes que não querem mesmo dispor-se ao exercício da empatia. São pessoas mais tristes e mais incompletas, apesar de profundamente convictas. Pelo menos, já que não querem ser empáticos, sejam simpáticos para não serem só bonzinhos superficiais ou para não se afundarem na maldade de um ódio proferido. Aceitem que há outros olhares, porque a identidade não é única. Permitam-se a humildade de perceber que também somos muitos os que não querem o vosso olhar único, porque rejeitamos a vossa indiferença, o vosso desprezo e o vosso ódio. Compreendam que a vossa singularidade contrasta fortemente com o nosso pluralismo. Talvez seja pedir-vos muito. Talvez não queiram o olhar do outro porque vos é demasiado exigente e trabalhoso. Mas não é a vossa preguiça que vai anular todas as identidades.

João Miguel Marques da Costa nasceu em Lisboa a 4 de novembro de 1972. Doutorado em linguística, é professor catedrático e membro do Partido Socialista Português. Manifesto pelas identidades e famílias foi escrito em resposta a outras obras recentes que, como já sabem, não citamos aqui. No entanto, eu diria que é mais que isso: Manifesto pelas identidades e famílias foi escrito também como uma obra resposta ao ódio crescente que vemos no nosso país e no mundo. Com o aumento dos regimes de extrema direita, dos partidos opressores e do ódio generalizado, este género de obras e estas temáticas são cada vez mais importantes. É urgente falar sobre igualdade e liberdade. Manifesto pelas identidades e famílias é, acima de tudo, um livro sobre igualdade e liberdade. Através de um discurso coerente, bem fundamentado e acessível a todos o autor fala sobre direitos e deveres, liberdades e igualdades; fala sobre a sociedade que nos cerca e as suas múltiplas facetas e sobre a importância de sabermos respeitar o espaço do outro e sermos respeitados. Em alguns momentos, é uma resposta clara, com contra argumentos claros, às referidas opiniões extremistas. Noutros pontos, torna-se um pouco mais emotivo e apela ao que de mais humano há em nós, à nossa empatia. Ensina, alerta e comove. Um livro que recomendo imenso, que nos deixa a pensar não só em nós, nos outros e na sociedade em que vivemos mas também no perigo que corremos atualmente. Muito, muito recomendado. Fundamental. 5*

Sonho da Aldeia Ding
Yan Lianke

Livro Físico

O silêncio é intenso. Todavia, nessa mesma ausência de vozes ou de som, a Aldeia Ding continua viva. Sufocada pela morte, recusa-se a morrer. Nas sombras mudas do outono, a aldeia mirrou a par da sua gente. As pessoas minguam e definham juntamente com os dias, como cadáveres enterrados debaixo da terra.

Aí, parado na beira da estrada que ligava a Aldeia Ding ao resto do mundo, ganhou consciência de uma realidade. A constatação de que as nuvens são um prenúncio de chuva. Que o final do outono gera o frio do inverno. Que os que tinham vendido o sangue há dez anos agora teriam a febre. E que os que tinham a febre iriam morrer, tão certo como a queda das folhas. A Aldeia Ding era uma aldeia pobre, tão pobre que nem tinha casas de tijolo. Até aparecerem os negociantes de sangue. As pessoas começam então a vender o seu próprio sangue e a sua vida melhora. Mas dez anos depois, chega a febre, o HIV que foi transmitido de uma pessoa para outra e para outra pelas agulhas contaminadas e usadas vezes sem conta. O que fazer quando nada se pode fazer? Sonho da Aldeia Ding, escrito por Yan Lianke e publicado pela primeira vez em 2010, foi proibido na China por falar de temas sensíveis relativos ao desenvolvimento do país, nomeadamente os vendedores de sangue. É um livro pesado, não pela escrita mas pelo tema que trata. Faz-nos pensar, deixa-nos com um aperto no peito e uma tristeza profunda. Acabamos enredados naquelas teias de personagens e é fascinante ver a forma brilhante como o autor consegue mostrar as diferentes versões das mesmas histórias. Nesta obra, ninguém é totalmente bom ou totalmente mau e todas as personagens estão a reagir, à sua própria maneira, a uma situação extremamente difícil. É uma obra escrita com muita maestria, que merece muito mais reconhecimento do que, devo dizer, tem tido. Fascinante. Possivelmente um dos melhores do ano. 5*, recomendado

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